Debate sobre a realidade Urbana e Territorial do Distrito Federal
Plano Diretor como instrumento da política urbana
JOSÉ CARLOS DE FREITAS
Promotor de Justiça em São Paulo
Pode-se extrair da Constituição Federal e do Estatuto da Cidade uma definição de que o plano diretor é o instrumento básico de planejamento de uma cidade e que dispõe sobre sua política de desenvolvimento, ordenamento territorial e expansão urbana (art. 182, §1º, CF; art. 40, EC).
Utilizando a recente expressão cunhada pela Lei nº 10.257/01 para tratar da tutela difusa do direito a cidades sustentáveis, podemos dizer que o plano diretor tem como objetivo disciplinar a ordem urbanística, um conceito vago de ampla latitude, que abrange o planejamento, a política do solo, a urbanização, a ordenação das edificações, enfim, as relações entre Administração e administrados e o conjunto de medidas estatais técnicas, administrativas, econômicas e sociais que visam ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade, organizar os espaços habitáveis e propiciar melhores condições de vida ao homem no meio ambiente natural, artificial e cultural.
Esta definição, a princípio simplista, não exprime toda a importância desse indispensável instrumento de condução da política urbana. Os desdobramentos de uma abordagem acerca do plano diretor são múltiplos e, por sua extensão, não compartam, aqui, uma incursão mais detalhada, senão uma exposição sobre os aspectos que reputamos mais relevantes para a finalidade a que fomos instados a falar.
I - ASPECTOS GERAIS
A elaboração do plano diretor implica, ao mesmo tempo, um processo destrutivo, com a ruptura dos padrões de desenvolvimento do "status quo", e outro construtivo, com a idealização de uma nova realidade urbanística.
O planejamento urbano encerra a idéia de uma ação prolongada no tempo. Demanda diagnóstico do objeto (os problemas da cidade), projeto, estudos, debates (audiências públicas), aprovação e implementação. Portanto, a planificação sobrevive aos governos, que são periódicos, parciais (representam uma ideologia) e efêmeros.
A aprovação do Plano Diretor se dá por lei municipal, portanto, pelo Legislativo. É a Câmara Municipal que aprova o plano (art. 182, §1º, CF), mas é o Executivo que o elabora. Portanto, é um ato complexo. Sua natureza jurídica é polêmica, havendo quem o conceba ora como ato administrativo, ora como ato normativo, ora como ato em parte normativo e em parte administrativo.
As normas do plano diretor, consoante anota VICTOR CARVALHO PINTO, "não apresentam, no entanto, natureza jurídica de lei em sentido material. Esta caracteriza-se pelos atributos de generalidade e abstração, ou seja, deve estabelecer normas iguais para um conjunto de situações jurídicas indeterminadas. Isto não é o que se espera do plano diretor, que, como visto, determina concretamente o direito de construir de cada terreno em particular e localiza as áreas destinadas a futuras obras públicas."
O Estatuto da Cidade estabeleceu requisitos, condições, conteúdo e dispositivos coercitivos mínimos para que os Municípios possam elaborá-los, dentro de regras gerais, como se esperava de uma lei federal.
II - CONTEÚDO DO PLANO DIRETOR
Como conteúdo mínimo do plano diretor, o art. 42 do E.C. exige: (1) a delimitação de áreas urbanas onde poderão ser aplicados os instrumentos coercitivos dos arts. 5º a 8º; (2) disposições para o exercício dos institutos do art. 4º, V, "m", "n", "o", e "p"; e (3) sistema de acompanhamento e controle.
Outrossim, pode-se falar de um conteúdo do plano diretor disperso por outros diplomas legais: a Lei nº 4.771/65 - Código Florestal, que determina a inclusão, no plano, das áreas de preservação permanente (art. 2º, parágrafo único - alterado pela Lei nº 7.803/89); a Medida Provisória nº 2166-67/2001, que condicionou a supressão de vegetação de preservação permanente à existência do plano diretor (art. 4º, § 2º), assim como a observância deste para a localização da reserva legal (art. 16, § 4º); a NBR nº 12.267 editada em 1992 pela ABNT, recomendando normas para a elaboração do plano diretor.
A Lei nº 6.766/79 contém dispositivos que se reportam ao plano diretor, que deve balizar a proporcionalidade entre as áreas públicas e a densidade de ocupação para a aprovação de loteamentos (art. 4º, I), definir índices urbanísticos (art. 2º, § 4º), estabelecer as zonas urbanas, de expansão urbana e de urbanização específica (art. 3º, caput), dispor sobre as diretrizes para urbanização (art. 8º), e para orientar a regulamentação de normas pelo Estado (art. 15, parágrafo único).
Em alguns casos, certos assuntos merecerão planos setoriais, como, por exemplo, um plano de drenagem urbana, naqueles municípios em que as inundações periódicas consomem a sociedade em preocupação, devido ao processo de ocupação e impermeabilização do solo resultante do fenômeno da urbanização desordenada das grandes cidades.
Enfim, o conteúdo do plano respeitará as especificidades locais, não se podendo concluir que das normas federais aqui tratadas se possa produzir planos em série, padronizados, comprados na forma de "kit".
III - FORMAÇÃO DO PLANO DIRETOR
A formação do plano diretor envolve complexidade técnica que depende da colaboração multidisciplinar de profissionais habilitados (em geral de engenheiros, arquitetos, urbanistas, geólogos, geógrafos, topógrafos, etc.) e da atuação de equipes especializadas na elaboração dos seus elementos, pois o plano diretor é documento que se apresenta sob a forma gráfica, contendo textos, relatórios, quadros, mapas, plantas, etc.
Segundo VICTOR CARVALHO PINTO, "a elaboração do plano diretor é privativa do profissional do urbanismo, que é uma especialização regulamentada pelo CONFEA (Conselho Federal de Engenharia, Arquitetura e Agronomia), por meio da Resolução nº 218/73". Mas é preciso lembrar que "o urbanismo trabalha a partir de insumos produzidos por outros especialistas, como o arquiteto ou engenheiro arquiteto (art. 2º), o agrimensor, o topógrafo (arts 4º e 6º), o geólogo (Lei 4.076/62) e o geógrafo (Lei 6.664/79)".
Elaborada a proposta, segue sua apresentação à população e segmentos da sociedade civil, para debates e audiências públicas, com publicidade e amplo acesso a seus documentos e informações (art. 40, § 4º).
Ultimada a fase de consulta popular, com a justificada incorporação ou não das propostas, e estabelecida a integração com o plano plurianual, as diretrizes orçamentárias e o orçamento anual (art. 40, §1º), deverá o Executivo encaminhar o projeto ao Legislativo local, que deverá aprova-lo.
IV - PRAZO PARA APROVAÇÃO DO PLANO DIRETOR
Estabelece o art. 50 do Estatuto que os municípios com mais de 20 mil habitantes, assim como os localizados em região metropolitana e aglomerações urbanas, que não tenham plano diretor aprovado, deverão fazê-lo no prazo de cinco anos. Por extensão, a norma aplica-se ao Distrito Federal (art. 51).
O Estatuto da Cidade não estabeleceu sanção aos Municípios que descumprirem a norma do art. 50, mas só aos Prefeitos, que incorrem em improbidade administrativa se deixarem de tomar as providências necessárias para elaborar o plano diretor (art. 52, VII).
Mas a omissão do Município pode ensejar o controle difuso da constitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal, ou da legalidade pelo Superior Tribunal de Justiça, conforme a questão venha a ser ventilada por recurso extraordinário ou especial, interposto em sede de ação individual.
Isso será possível, por exemplo, quando o Município quiser valer-se de institutos ou instrumentos criados pelo Estatuto da Cidade, que dependam da necessária previsão em plano diretor ainda não aprovado.
Se o Município, por exemplo, sem observar o disposto no art. 182, § 4º, da Constituição Federal, instituir a obrigação de edificar ou parcelar imóvel urbano, com base no art. 5º do Estatuto da Cidade, sem plano diretor delimitando a área em que incidirá a imposição, a questão poderá ser suscitada ao STF. Quando, por hipótese, sem aprovar plano diretor, instituir direito de preempção em seu favor, poderá haver o controle da legalidade pelo STJ.
O descumprimento do art. 50 enseja também um controle concentrado, mediante ação de inconstitucionalidade por omissão (art. 103, § 2º, CF). Essa ação somente poderá ser ajuizada se a Carta Estadual, a exemplo da Federal, exigir a elaboração de planos diretores pelos Municípios, caso em que haverá omissão destes em concretizar o respectivo comando constitucional, posto que não se pode veicular pretensão de inconstitucionalidade concentrada de dispositivo municipal em face da Carta Magna.
Conforme analisa NELSON SAULE JR , se a omissão for do Executivo em elaborar e enviar o plano ao Legislativo municipal, pelo art. 103, § 2º da CF a decisão do Tribunal determinará que o primeiro cumpra a obrigação, no prazo de trinta dias. Persistindo a omissão, o Prefeito poderá incorrer em sanção política (perda do mandato por cassação), se assim dispuser a lei orgânica municipal, e em sanções penais por crime de responsabilidade, por deixar de cumprir ordem judicial (Decreto-lei nº 201/67, art. 1º, XIV). Assim também responderá o Governador do Distrito Federal (art. 1º da Lei nº 7.106/83 c.c. artigos 12, nº 2, e 74, ambos da Lei nº 1.079/50).
Se a omissão em concretizar a norma constitucional partir do Legislativo, haverá tão-somente declaração de inconstitucionalidade por omissão, não tendo esta decisão cunho mandamental de determinar a edição de plano diretor. A sanção não será outra que não a política, a ser exercida pelos eleitores, a tempo e modo, em face dos vereadores omissos, embora os lesados possam valer-se dos efeitos indiretos da decisão declaratória, pleiteando indenização por responsabilidade do Estado pela omissão legislativa.
Julgamos oportuno e apropriado o manejo da ação civil pública nesse caso, em defesa da ordem urbanística (art. 53, E.C.), com pedido inibitório dirigido ao Município, impondo-lhe obrigação de não fazer, enquanto não for aprovado o plano diretor, quando obrigatório, nos termos do art. 182, § 1º, da Constituição Federal e dos artigos 41 e 50 da Lei nº 10.257/01.
Sendo o instrumento básico para a política de desenvolvimento e de expansão urbana (art. 182, § 1º, CF; art. 40, EC), cremos que a ausência de plano diretor impede a alteração pontual das leis de cunho urbanístico (notadamente de parcelamento, de uso e ocupação do solo) que promovam a substancial alteração espacial e estrutural da urbe, quer a aprovação de loteamentos (forma de expansão das cidades), quer a realização de obras e empreendimentos públicos e privados que provoquem alterações expressivas no espaço urbano.
Não se poderá legitimamente administrar a urbe nem legislar sobre seu território sem que haja a definição da cidade que queremos, concebida no plano diretor, que é parte integrante do processo de planejamento municipal, e cujas diretrizes e prioridades devem ser incorporadas no plano plurianual, nas diretrizes orçamentárias e no orçamento anual (art. 40, § 1º, EC).
Como a formulação e a implementação do plano diretor exige a participação popular, estaríamos admitindo a gestão da cidade sem o necessário controle social, para o exercício da democracia participativa que o Estatuto da Cidade visou garantir (artigos 2º, II, XIII; 4º, III, "f" e § 3º; 27, § 2º; 33,VII; 40, §4º; 42, III; 43 a 45; 52, VI), e dar concreção às normas dos artigos 29, XII, e 182 da Constituição Federal, razão por que o direito difuso à cidade planejada comporta tutela pela ação civil pública (art. 53 da Lei nº 10.257/01 - E.C.; art. 21 da Lei nº 7.347/85 - LACP; artigos 83 e 117 da Lei nº 8.078/90 - Código de Defesa do Consumidor).
V - APLICABILIDADE DAS NORMAS DO ESTATUTO DA CIDADE AO DISTRITO FEDERAL E A SEU GOVERNADOR
É oportuno falar também do tratamento que o Estatuto da Cidade conferiu ao Distrito Federal.
O Distrito Federal ocupa especial posição na federação brasileira, apresentando-se como um Estado-membro ou entidade estatal anômala, por ter Legislativo (com Deputados Distritais), Executivo (chefiado por um Governador) e Judiciário próprios, assim como um Ministério Público do Distrito Federal e Territórios que atua perante um Tribunal de Justiça e juízes de primeiro grau de jurisdição.
Não pode ser dividido em municípios, mas se constitui em regiões administrativas, entre as quais encontramos a cidade de Brasília, a Capital da República. Rege-se por lei orgânica própria e detém as competências legislativas atribuídas aos Estados e Municípios (art. 32 e §§, CF).
Para os efeitos da Lei nº 10.257/01, as disposições relativas ao Município e ao Prefeito aplicam-se ao Distrito Federal e ao Governador Distrital, respectivamente (art. 51), significando, por exemplo, que o Distrito Federal deve cumprir também as diretrizes do art. 2º que se refiram especificamente ao Município (incisos IV, VII, VIII e XIII), bem como se render ao controle social na utilização dos instrumentos da política urbana que demandem dispêndio de recursos do Poder Público Distrital (art. 4º, § 3º).
Desde que elabore um plano diretor com o perfil desenhado pelo Estatuto da Cidade, com leis específicas, poderá também: (a) utilizar o direito de preempção para adquirir imóvel urbano (arts. 25 a 27); (b) receber recursos da iniciativa privada com a outorga onerosa do direito de construir e com a alteração do uso do solo (arts. 28 a 31); (c) promover transformações urbanísticas, melhorias sociais e valorização ambiental com operações urbanas consorciadas (arts. 32 a 34); e (d) autorizar a transferência do direito de construir ao proprietário de imóvel urbano (art. 35).
Deverá necessariamente elaborar (ou revisar) seu plano diretor se pretender valer-se dos instrumentos coercitivos para obrigar o particular a promover o adequado aproveitamento do solo urbano, como o parcelamento e a utilização compulsórios, o IPTU progressivo no tempo , a desapropriação-sanção, ou quando quiser utilizar os instrumentos jurídicos do art. 4º, inciso V, alíneas "m", "n", "o" e "p" do Estatuto da Cidade.
Segundo se infere do art. 51, também se aplicam ao Governador Distrital as disposições do art. 52, relativas às hipóteses de improbidade administrativa, a que nos reportamos nos comentários abaixo.
VI - IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA e PLANO DIRETOR NA LEI Nº 10.257/01
O Estatuto da Cidade contém normas de ordem pública e de interesse social, que propõem regular o uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo, da segurança e do bem-estar dos cidadãos, assim como do equilíbrio ambiental (art. 1º, parágrafo único), objetivando ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade.
Daí porque elegeu, no art. 52, sete comportamentos de Prefeitos (e Governador Distrital - art. 51) que qualificou de improbidade administrativa, dentre ações ou omissões que, por malferirem a ordem urbanística, comportam as respectivas sanções civis, administrativas e políticas da Lei 8.429/92.
Tais condutas, ora se caracterizam pela prática ou não de atos, com desvio de finalidade - sobre a destinação de bens incorporados ao patrimônio público ou quanto à aplicação de recursos auferidos com atividades urbanísticas (II, III, IV e V) --, ora se relacionam aos procedimentos que devem ser observados na elaboração, implementação e revisão do plano diretor (VI e VII), ora dizem respeito a danos afetos ao erário (VIII).
Ao utilizar a expressão "... nos termos da Lei nº 8.429, de 2 de junho de 1992...", o art. 52 do Estatuto da Cidade estabeleceu conexão direta entre as sete novas espécies e as três categorias básicas da Lei de Improbidade Administrativa, quais sejam, as que importam enriquecimento ilícito, que causam prejuízo ao erário ou que atentam contra os princípios da Administração Pública. A mesma conexão já estava prevista na Lei nº 8.429/92, isto porque, na redação do "caput" dos artigos 9º, 10 e 11, o legislador utilizou a palavra "notadamente" para exprimir a idéia de um rol exemplificativo, abrindo a possibilidade de abranger outros atos, fatos ou omissões relevantes.
Significa que o Prefeito ímprobo (ou Governador Distrital), aos olhos da Lei nº 10.257/01, terá sua conduta subsumida a um dos três gêneros da Lei de Improbidade, para, ao depois, reportar-se às sanções do art. 12 da mesma lei.
Interessa-nos, aqui, tratar das figuras que têm direta relação com o plano diretor, quais sejam, as previstas no art. 52, incisos VI e VII, da Lei nº 10.257/01.
VI.1 - PARTICIPAÇÃO POPULAR, PUBLICIDADE E ACESSO À INFORMAÇÃO
O inciso VI do art. 52 do Estatuto da Cidade prestigia os princípios constitucionais da democracia participativa e da publicidade dos atos da Administração, pois, segundo o art. 40, § 4º, I a III, no processo de elaboração do plano diretor e na fiscalização de sua implementação, o Legislativo e o Executivo devem assegurar a participação da população e de associações representativas dos vários segmentos da comunidade, assim como a publicidade e o acesso a documentos e informações produzidos durante esse processo.
O Estatuto da Cidade está impregnado do princípio da gestão democrática da cidade ou do controle social das políticas públicas afetas à ordem urbanística, conforme verificamos nos artigos 2º, II, XIII; 4º, III, "f" e § 3º; 27, § 2º; 33, VII; 40, §4º; 42, III; 43 a 45; 52, VI.
O princípio participativo que a Lei nº 10.257/01 adota, caracteriza-se pela "participação direta e pessoal da cidadania na formação dos atos de governo" . Ele encontra fundamento no art. 29, XII, da Constituição Federal, que assegura a participação de associações representativas no processo de planejamento municipal, do qual, aliás, o plano diretor é parte integrante (art. 40, § 1º, do E C).
Segundo o Estatuto da Cidade, o controle social ou a participação popular na elaboração e execução do plano diretor faz-se mediante a realização de audiências públicas e debates (art. 40, § 4º, I). Para a etapa de sua implementação, entendemos que o legislador, ao estabelecer o conteúdo mínimo do plano diretor, atribuindo ao Município a tarefa de definir os meios e instrumentos para o sistema de acompanhamento e controle (art. 42, III), deu espaço para a população fiscalizar o cumprimento dos dispositivos e metas do plano.
Essa participação na discussão do plano diretor implica dificuldades: primeiro porque o governo municipal, preocupado com seu programa partidário, compromissos eleitorais de curto prazo e sendo avesso a ingerências de grupos setoriais ou ideológicos, tenderá a fazer preponderar sua proposta de planejamento, que pode não representar a aspiração coletiva; segundo porque haverá necessidade de compor os interesses em conflito, que disputam o mesmo direito de utilizar a cidade de acordo com suas conveniências (setor produtivo imobiliário, industrial, comercial, de serviços, movimentos sociais, arquitetos, urbanistas, moradores, etc.).
Como aponta MARICELMA RITA MELEIRO, o controle democrático deve abranger todas as etapas de planificação municipal (elaboração, execução e revisão) e ser o mais amplo possível, envolvendo não só os colegiados criados pelo Poder Público (entidades comunitárias de bairros, conselhos distritais ou de desenvolvimento urbano), mas também as entidades autônomas e os indivíduos que isoladamente compõem a população, como expressão do mais alto grau do princípio democrático, não devendo haver "qualquer preponderância da representação das associações sobre a participação direta do cidadão interessado no processo de planejamento" , por força do parágrafo único do art. 1º da Constituição Federal, que abriga o princípio explícito da democracia participativa.
A participação efetiva não se limita a referendar ou dar sugestões, mas significa que o agente deve ter condições de "debater propostas, deliberar sobre elas e, sobretudo, mudar o curso de ação estabelecido pelos dirigentes e formular cursos de ação alternativos".
Quando a Lei nº 10.257/01 diz que o Executivo e o Legislativo Municipais devem garantir a transparência, franqueando o acesso a documentos e informações (art. 40, §4º, II e III), deve-se entender que para a concreção do princípio da publicidade e do direito à informação, a linguagem técnica contida na proposta do plano diretor deve ser acessível ao leigo, para que possa alcançar o seu significado e debater o conteúdo de suas idéias.
O Prefeito, o Governador Distrital, o servidor ou agente público que impedir ou deixar de garantir tais requisitos poderá incidir nas sanções políticas, administrativas e civis decorrentes da violação aos princípios da legalidade e publicidade ínsitos à atividade administrativa, vale dizer, nas penas cominadas no art. 12, III, por infração ao art. 11 da Lei nº 8.429/92.
Pune-se tanto a conduta omissiva quanto a comissiva. São exemplos os expedientes para tumultuar, retardar ou obstruir, sem justificativa, a convocação, divulgação e realização de audiência pública; a não-publicação de todos os documentos e informações sobre o plano; a criação de obstáculos ou negativa de acesso aos documentos e informações componentes da proposta do plano.
VI.2 - GARANTIA DE APROVAÇÃO E DE REVISÃO DO PLANO DIRETOR
A Lei nº 10.257/01 fixou o prazo de cinco anos para a aprovação do plano diretor, nas hipóteses de Municípios com mais de vinte mil habitantes e para os integrantes de regiões metropolitanas e aglomerações urbanas, que não tenham plano diretor aprovado na data de entrada em vigor dessa lei (art. 50). Outrossim, exigiu a revisão da lei que o instituiu, a cada 10 anos, pelo menos (art. 40, § 3º).
O Prefeito (e também o Governador Distrital - art. 51) que deixar de tomar as providências necessárias para garantir a aprovação e a revisão do plano diretor, incorrerá em improbidade administrativa, nos termos dos arts. 11 e 12, III da Lei nº 8.429/92, por violar o princípio da legalidade.
A aprovação se dá por lei municipal, portanto, pelo Legislativo. É a Câmara Municipal que aprova o plano (art. 182, §1º, CF), mas é o Executivo que o elabora. Portanto, é um ato complexo que exige maior atenção do Prefeito para preparar o plano em tempo suficiente para garantir a aprovação pelos Vereadores, tudo no lapso de cinco anos.
A expressão "deixar de tomar as providências" tanto abrange a conduta omissiva quanto a comissiva que, através de expedientes sutis e ardilosos, vier tumultuar, retardar ou obstruir, sem justificativa, o trâmite das fases de elaboração do plano diretor, como a contratação de profissionais não habilitados, retirando o valor jurídico do plano , a convocação irregular de audiência pública, a não-publicação de todos os documentos e informações componentes da proposta do plano, dentre outros.
Resta saber qual o Prefeito ou o Governador Distrital poderá ser responsabilizado por não adotar as providências previstas no art. 40, §3º e art. 50 do Estatuto da Cidade, sabendo-se que o mandato desses administradores é de quatro anos (art. 29, I, CF; art. 32, § 2º c.c. art. 28, CF) e que os prazos de aprovação e revisão do plano diretor são de cinco e dez anos, respectivamente.
O raciocínio aqui aplicável aos Prefeitos estende-se aos Governadores Distritais, respeitada a peculiar periodicidade do seu mandato.
Como a Lei nº 10.257/01 entrou em vigor em outubro de 2001, e como a aprovação do plano pela Câmara Municipal deve ser ultimada até outubro de 2006, o prazo para a elaboração do plano apanha tanto os prefeitos que tomaram posse em janeiro de 2001, cujos mandatos expirarão em dezembro de 2004, assim como os que assumirem seus cargos a partir de janeiro de 2005, caso os seus antecessores não tenham elaborado a proposta de plano nem encaminhado à Câmara Municipal.
Por sobejar tempo para a aprovação legislativa, os Prefeitos do primeiro mandato (jan/2001-dez/2004) poderão alegar que há tempo suficiente para seus sucessores elaborarem o plano. Os Prefeitos do segundo mandato dirão que o tempo maior coube aos antecessores.
Cremos que se não houver a elaboração e encaminhamento do plano diretor no lapso de cinco anos, e dentro de um prazo suficiente para a Câmara aprová-lo, devem ser punidos tanto o Prefeito do mandato de janeiro/2001-dezembro/2004, porque mais tempo dispôs para elaborar o plano, quanto o seu sucessor, com mandato iniciado em janeiro/2005, que também terá tempo hábil para tanto -- curto, mas possível --, exceto se houver empecilho invencível.
Se o plano for elaborado na gestão que se iniciar em janeiro/2005, até outubro/2006, portanto dentro do lapso dos cinco anos, não haverá motivo para a punição dos Prefeitos da primeira gestão, porque o plano diretor foi elaborado.
Pouco diferente será o critério para o caso da revisão do plano diretor. Em outubro de 2006 começará a contar o prazo de revisão, que é de dez anos, ou seja, até 2016. Esse lapso de tempo apanha a metade dos mandatos do período de janeiro/2005 a dezembro/2008, mais os mandatos integrais de janeiro/2009 a dezembro/2012, assim como os mandatos dos Prefeitos que terão início em janeiro/2013 e término em dezembro/2.016.
Lembrando-se que o prazo prescricional previsto na Lei nº 8.429/92, para a propositura da ação por improbidade administrativa, é de cinco anos após o término do exercício do mandato do Prefeito (art. 23, I), somente os titulares dos dois últimos mandatos poderão ser responsabilizados, na omissão de ambos.
Por fim, como o processo de aprovação é parte de um ato complexo e que, por sua natureza, o plano diretor não é uma lei sob o aspecto formal - por lhe faltar as características de abstração e generalidade - mas uma lei de efeitos concretos , os Vereadores também incorrem em improbidade administrativa, caso sua conduta se amolde ao inciso VII do art. 52 do Estatuto da Cidade.
Estas as nossas impressões iniciais sobre o plano diretor como instrumento da política urbana.