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Ivaldo Lemos Junior

A pessoa mais antiga identificada no Brasil foi apelidada de “Luzia”. Os restos esqueletais desse indivíduo do sexo feminino, de idade entre 20 e 25 anos, foram localizados no sítio arqueológico de Lagoa Santa, MG, com datação de radiocarbono entre 11 e 12,9 mil anos.

Essa estimativa é extremamente relevante, porque desafia a cultura hegemônica da chamada “Cultura Clovis”, segundo a qual a penetração humana na América se deu pelo estreito de Bering, que hoje é um canal marítimo entre Rússia e Alasca, mas que, no final do Pleistoceno, consistia em uma placa de gelo. Ao depois, os heróicos viajantes teriam descido por um corredor livre de gelo, paralelo às Montanhas Rochosas, até se dispersarem por todo o continente. Como isso teria ocorrido há 11,4 mil anos, a existência de Luzia e seu povo é vista com extrema desconfiança, porque exige a dificuldade de novas teses, improváveis e incômodas.

De todo o modo, é mais do que certo que Luzia não foi enterrada. Não se sabe bem porque, mas o fato é que seu corpo jazeu, durante meses ou anos, no fundo de um abrigo, que à época era uma fenda de mais de doze metros de profundidade. Com o tempo, o corpo foi sendo coberto por sedimentos, e os ossos foram se espalhando (v. Neves/Piló). Em outras palavras, Luzia deve ter caído em um buraco, e morrido na queda ou desaparecido na aflição de seu sepulcro solitário, de onde só saiu milênios depois, e em parte.

Mas o seu povo era, sim, dado à prática de enterramentos, e de um tipo sofisticado e muito ritualizado. A bem da verdade, eram dois enterros: o chamado “primário”, com toda a pompa (incêndio de fogueiras, empilhamento de pedras de calcário, deposição de ocre), até a degradação dos tecidos moles, e o “secundário”, com a exumação, limpeza e pintura dos ossos, e o reenterro em uma cova menor.

Isso me lembra 3 experiências muito distintas, no tempo e no espaço, sem nenhuma relação entre si senão em sua veracidade histórica:

1 – as tribos dos ianomamis (Venezuela) e guayaki (Paraguai) não deixavam o defunto apodrecer. Eles achavam desrespeitoso que os vermes dessem cabo da carne, e preferiam fazê-lo por conta própria. Os primeiros ingeriam as cinzas dos ossos com purê de banana, e o pessoal do Chaco comia churrasco com miolo de pindoba. São casos, portanto, de endocanibalismo, mas por motivos religiosos, não-alimentares;

2 – o cemitério judaico de Praga era muito reduzido e superlotado, porque se tratava do único espaço do gueto onde os descendentes dos hebreus podiam ser enterrados. A superfície absconde várias camadas de gente morta, empilhadas umas em cima das outras. Hitler quis deixar o local intacto para fazer dele um glorioso “memorial da raça extinta”. Não é nada difícil imaginar o Füher e seus sicofantas caminhando pelas tumbas, chutando-as, cuspindo, rindo alto, satisfeitos;

3 – as crucificações romanas não admitiam sepultamento. O sujeito ficava pregado não só até o óbito (o que durava, em média, 2 dias), mas depois dele, quando virava carniça e saciava abutres e rapinadores em geral. Das milhares de execuções, até hoje só foi encontrada em Jerusalém uma única ossada, de um sujeito chamado Yehohanan (João), filho de Hagakol. Suas mãos não foram perfuradas e, a julgar pelo calcanhar, ele só pode ter sido cravado com as pernas abertas. Com o Nazareno, Pilatos autorizou José de Arimatéia sua remoção do madeiro porque a Páscoa estava prestes a começar, e seria de mau gosto receber os visitantes com aquela cena macabra.

Em A Solidão dos Moribundos, Norbert Elias observa que o isolamento precoce dos que estão para morrer é um testemunho das dificuldades que muitas pessoas têm em identificar-se consigo. De fato, não é difícil compreender porque as pessoas repudiam a idéia de serem, elas mesmas, velhas, doentes, prostradas no leito de morte. E que, em breve, juntar-se-ão ao time do pó e das cinzas. Mas a queda de Luzia no buraco pode ser o prelúdio do que viria a acontecer no Brasil: velórios apressados, enterros sem cerimônias, cemitérios feios, mal-cuidados e caros e até corrupção dos contratos de concessão. Não resisto à tentação de dizer que somos um povo que não sabe se enterrar com o devido respeito.

Jornal de Brasília

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