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Fausto Rodrigues de Lima
Promotor de Justiça no Distrito Federal e coordenador do livro Violência doméstica - vulnerabilidades e desafios na intervenção criminal e multidisciplinar

A Campanha 16 dias de Ativismo pelo Fim da Violência contra as Mulheres, de 2007, realizada em mais de 135 países com o apoio da Organização das Nações Unidas (ONU), apresentou atuação pioneira da Promotoria de Justiça de Samambaia (DF), que assumiu a responsabilidade de acusar os agressores, retirando tal fardo das costas das vítimas. A prática acabou com a impunidade e, por conseqüência, reduziu a reincidência.

Há poucos dias, o Superior Tribunal de Justiça (STJ), analisando o trabalho realizado, acolheu aqueles fundamentos e determinou à Justiça brasileira que siga o mesmo procedimento, qual seja, investigar e punir os crimes, sem necessidade de autorização das vítimas. As autoridades devem agir quando souberem, por qualquer via, que uma mulher está sendo agredida por algum familiar.

A decisão histórica representa mudança de postura da Justiça brasileira, que, rompendo uma tradição secular, pretende retirar o país da categoria dos que mais discriminam mulheres.

A tradição remonta ao direito de os maridos castigarem as esposas, introduzido no Brasil em 1603 pelo rei Filipe, monarca de Espanha e Portugal. A revogação daquela norma pelo Código Criminal do Império (1830) e a Constituição de 1988, que estabeleceu a igualdade dos sexos, não impediram que o costume adentrasse o século 21. Para entender a assertiva, reflitamos sobre algumas culturas que nós, ocidentais, arrogantemente julgamos atrasadas.

No Oriente Médio, muitos pregam que a mulher, por ser considerada inferior, deve se submeter ao marido, o qual tem o direito de castigá-la corporalmente. No entanto, as correções devem evitar partes sensíveis, quebra de osso, derramamento de sangue ou a presença de crianças, segundo esclareceu o clérigo Abdullah Aal Mahmud, em entrevista à Televisão do Barein (20/6/2005). O resto está liberado. No livro A mulher no Islã (Espanha, 2000), o sheik Muhammad Kamal Mustafa ensina: "O espancamento (da mulher) nunca deve ser em fúria cega e exagerada de modo a que se evitem danos sérios. É proibido bater-lhe nas partes sensíveis do corpo, tais como a cara, peito, abdômen e cabeça. Em vez disso, deverá bater-se-lhes nos braços e nas pernas, usando uma vara que não deve ser rígida, mas fina e leve, de modo a não deixar feridas, cicatrizes ou nódoas".

Inacreditável? Não, se constatarmos que, até a citada decisão do STJ, o Brasil aplicava costume mais perverso. A apuração dos casos em que as mulheres se recuperassem, sem seqüelas, até o 30º dia do espancamento, dependia de representação, ou seja, de autorização das vítimas. Tais práticas, consideradas "leves" pelo Código Penal, incluem, além do clássico olho roxo, o ato de quebrar ossos, tirar sangue, bater em partes sensíveis ou na presença de crianças. Até queimar ou usar armas é considerado "leve" (curioso notar que a lei do rei Filipe era até mais "benéfica" às mulheres, pois não admitia agressões praticadas com armas).

Nesse vale-tudo, em que o único limite do marido era a criatividade, a Justiça promovia "conciliações", instando as vítimas a desistir dos procedimentos. A dependência econômica ou emocional, aliada à postura social de justificar o comportamento masculino e culpar o feminino, resultava no encerramento de mais de 90% dos casos, sem qualquer apuração. Na prática, bater em mulher não era considerado crime, bastava convencê-las a perdoar o agressor.

Com a nova jurisprudência, o STJ conclama o Ministério Público a agir. Os policiais devem investigar e prender em flagrante sempre que souberem da prática de violência. Familiares, parentes, vizinhos ou amigos podem denunciar, até mesmo anonimamente (já há casos de vítimas que, temendo represálias, fazem denúncias anônimas, confiantes no novo modelo).

Para disseminar a mudança de postura, o Ministério de Políticas para as Mulheres e a Agende (Ações em Gênero e Cidadania) relançam nos próximos dias a Campanha 16 dias, com o sugestivo slogan: "Há momentos em que sua atitude faz a diferença". Na oportunidade, especialistas renomados lançarão o livro Violência doméstica - vulnerabilidades e desafios na intervenção criminal e multidisciplinar, o qual aborda a experiência de Samambaia.

Correio Braziliense

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