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Fausto Rodrigues de Lima
Promotor de Justiça de Brasília

Em Atração fatal (1987), o personagem de Glenn Close barbariza a vida do pretenso amante (Michael Douglas) e de sua família. O recém-lançado Obsessiva, estrelado por Beyoncé, repisa a mesma história. Sobre o tema, nada de novo. Porém, há algo incomum na película: o galã (Idris Elba) é negro, bem-sucedido e "respeitável". O que mais chama a atenção, porque foge aos padrões culturais, é que ele não é o "palhaço" da história, destacado para divertir os demais. Seu personagem é racional, sério e sedutor. O galã negro arrasa o coração (ou a libido) das mulheres e até de seu secretário. A ele é garantida a "dignidade masculina" geralmente reservada aos personagens brancos (olhos azuis?). Nunca assisti a um filme em que o negro foi colocado num patamar tão "digno".

Com efeito, o negro não se vê, não se reconhece na mídia. Primeiro, porque não está lá. Segundo, porque, quando dá as caras, a ele são reservados papéis subalternos. As novelas brasileiras, os telejornais e as propagandas estão repletos de pessoas felizes e exemplares, mas de pele clara. Quando aparece um negro, é apenas por concessão e nunca para brilhar (a jornalista Glória Maria é uma exceção).

Essa invisibilidade fomenta o preconceito e facilita a atribuição de qualidades negativas a pessoas de pele escura. Após a edição da Lei 10.741/03, que pune a injúria racial, o Ministério Público tem recebido denúncias de crimes verbais, em que se acrescentam ao termo "negro" outras expressões como vagabundo, fedido, traiçoeiro, safado etc. É comum também a prática do crime de racismo, quando, em vez de injuriar uma só pessoa, o ofensor desqualifica toda uma raça ou etnia, como no clássico: "Só podia ser negro".

Muitos acusados se defendem com a alegação de que foi apenas uma brincadeira. No livro História da feiúra (2007), Humberto Eco constata que rimos de quem desprezamos (ou odiamos). As piadinhas sobre negros, sogras, gordos, "bichinhas", nordestinos, cornos etc. demonstram o grau de respeito que nossa sociedade confere a certas pessoas.

Nesse contexto, a reação ao filme foi sugestiva. O galã arrancou suspiros. No entanto, quando seu filho - um bebê lindo, de bochechas gordinhas -, aparecia na tela, o cinema era tomado por um silêncio ensurdecedor. Não se ouvia uma exclamação sequer de carinho ou admiração pela beleza negra daquele bebê. Outros gorduchinhos de pele e olhos claros costumam causar ataques histéricos, ao estilo: "Oooh, que gracinha, dá vontade de apertar".

Tome-se como exemplo o sucesso de certo livro infantil no último Natal, que apresentou fotos de diversos bebês branquinhos de olhos azuis, com somente um negro entre eles. Num país em que a maioria da população é negra ou mestiça, admiram-se os filhos dos escandinavos. Isso demonstra o quão dominante é a cultura vinda da Europa, que impõe um padrão de beleza destacado das outras etnias. O asiático e o árabe sofrem o mesmo preconceito.

O Programa Nacional de Direitos Humanos (21/12/2009) prevê ações para "fomentar programas de valorização do patrimônio cultural das populações negras" e "assegurar o resgate de sua memória, mediante a publicação da história de resistência e resgate de tradições das populações das diásporas" (diretriz 9, itens h e i). Essa meta enfrentará obstinada resistência.

Lembre-se que o Ministério Público da Bahia requereu a revisão da novela Sinhá Moça, que apresentou negros passivos sendo salvos por brancos benevolentes, mas a Justiça indeferiu o pedido. Num país em que a arquitetura popularizou a dependência completa de empregada (DCE), minúscula senzala para abrigar pessoas com salários infames, tais fatos parecem naturalizados. A ira dirigida à religião afrodescendente, como a destruição de imagens de orixás recentemente em Brasília, é sintomática dessa constatação e relembra os áureos tempos do nazismo.

É fato que o galã de Obsessiva ocupa seu devido lugar na sociedade estadunidense: vice-presidente de uma companhia. Seus colegas, amigos e vizinhos, porém, são todos brancos. No ponto, é fiel à realidade: Michael Jackson e família também buscaram se "embranquecer" em bairros brancos para serem aceitos. Beyoncé não foge desse padrão, pois sua beleza se aproxima mais dos traços "finos" europeus.

Porém, dentro do padrão estético e "higiênico" dos estúdios de Hollywood, que falseiam a realidade e mais parecem propagandas de sabão em pó, foi bom assistir a um filme que colocou alguma coisa fora do lugar.

 Correio Braziliense

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