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Ivaldo Lemos Junior
Procurador de justiça do MPDFT

Vamos pensar em “lei” -- seja ela qual for, pode ser algo muito conhecido como o Código Civil ou o Penal, ou então a Lei Federal 10.000/2000, que instituiu, muito justamente, 23 de abril como o Dia Nacional do Choro --, como uma partitura. Esta é de máxima importância para que o musicista execute a obra, transformando notas escritas em notas musicais. O que não passava de um conjunto tátil e visual de pauta, claves e símbolos acessíveis aos que estudaram o assunto, converte-se em música e esta, por sua vez, em beleza e referências emocionais. A “Oferenda Musical” de Bach é uma combinação dos dois elementos: papel escrito por um sujeito criativo e sua transfiguração por instrumentistas em sons. A primeira sem a segunda é inútil e a segunda sem a primeira é impossível. Sir Karl Popper tentou explicar esse fenômeno com a “Teoria dos três mundos”.

Qualquer um que souber decifrar o conteúdo da partitura e executá-la com precisão produzirá a arte ali contida em potência. Mas não da maneira exata que outros, ou que ele mesmo nos mais variados contextos da vida. Há detalhes sutilíssimos que escapam à explicação e que fazem alguma ou muita diferença; não somos robôs. Na música popular, há um sem número de pessoas que aparecem naquele famoso canal de vídeo da internet, a tocar o solo de guitarra de “Beat it”. Todos ensaiaram bastante, sem dúvida, mas é nítido que para uns a peça saiu com mais naturalidade do que para outros. Observem Lee Q Wu e a impressão é a de que ele atingiu aquela perícia toda de olhos fechados. Já Sophie Lloyd constrói algo com mais espontaneidade e senso de improvisação. Outros mais foram corretos, com ou sem verve.

Agora vamos à lei. Esta é a mesma “erga omnes”, as palavras não mudam. O que muda é o talento de quem a lê e nessa atividade incidem tantos fatores, como a percepção linguística, histórica, comparada, jurisprudente, econômica, religiosa. A missão hermenêutica revela muito sobre o caráter do indivíduo, a começar por um certo movimento de generosidade ou de mau grado. As leis não são perfeitas e sim produtos humanos recheados de falhas, e os juristas desfrutam da opção propedêutica de tentar tirar o máximo proveito delas ou de tocar nelas com nojo. É fácil desprezar a lei. Mas o que justifica sua própria “raison d´être” repousa no consenso de que ela deve ser acatada mesmo que seja defeituosa. Se esse consenso é frágil, a ideologia jurídica se desloca para as atribulações dos ditames “de lege lata” e a ordem positiva não passa de um pastiche que de ordem mesmo só tem um vago perfume. O panorama é o de tribunais burgueses que funcionam no expediente forense mesmo se fracassarem na compenetração da “mens rea” dos que estão apodrecendo na cadeia e que acham que leis burguesas deveriam ser descartadas no vaso sanitário.

Lei é uma partitura composta pelo legislador (o próprio povo, ainda que indiretamente) e concretizada por seus destinatários, que são seus intérpretes. Todos têm o direito de fazer isso como bem quiser. Mas só quem o faz de modo cogente é o Judiciário (que não é povo no mesmo sentido). Se a compreensão particular divergir da do juiz, é a deste que prevalece e nisso podem surgir surpresas desconcertantes, como o simplismo intuitivo da gramática, ou seja, de uma partitura que, em si, é muda. É a Justiça o destinatário derradeiro dos trabalhos mais típicos do Legislador, só ele tem autoridade para afirmar o que a lei quis dizer. É no martelo que se transubstancia lei federal em norma jurídica.

Com isso, chego ao objetivo deste artigo. Eis a tese: no início de cada legislatura, após acúmulo de grande número de arestos, as Cortes deveriam comunicar à nova composição do Congresso — sempre respeitada a autonomia deste -- as principais dificuldades enfrentadas por imperfeições de redação legal, para fins de aprimoramento e para se evitar polêmicas processuais desnecessárias. Hoje, isso é feito com o atalho das súmulas, o que nem sempre é efetivo quando o estorvo está na lei e esta é que precisaria ser melhorada.

Correio Braziliense - 26/6/2025

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