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Ivaldo Lemos Junior
Promotor de Justiça do MPDFT

A Bíblia diz que, quando morremos, viramos pó. Pois isso não é nenhum exagero, mas a mais pura verdade: se alguém falecer ao ar livre e assim ficar, do seu organismo não deverá restar absolutamente nada. A decomposição de imediato atrai os seres necrófagos, que não são poucos, e que devorarão os tecidos moles e até as partes duras. Ossos e dentes, se sobrarem, embranquecerão pela ação do sol, e em poucos anos estarão reduzidos a cinzas, que o vento varrerá. É só uma questão de tempo para que não sobre o menor vestígio do indivíduo.

Eu sei que não é fácil conceber esse processo como uma possibilidade real. Há muito foram inventados locais propícios – mausoléus, cemitérios, crematórios -- para que os vivos pudessem perpetuar a existência dos que já se foram, nem que seja de modo precário, como a manutenção da ossada em uma caixa debaixo do solo ou do corpo convertido em poeira dentro de uma jarra de porcelana.

Esperamos receber o mesmo tratamento quando chegar o nosso dia, e que se livrem de nosso cadáver dignamente antes que o faça o apetite impiedoso dos bichos. Se for montado um velório e a ele acorrer uma multidão a nos chorar, sincera e condoída, tanto melhor; quem não gosta de acreditar que a sua ausência será sentida, e que foi pranteado como “uma pessoa maravilhosa” ou “uma perda irreparável”? Mesmo os que não parecem fazer falta a ninguém, como indigentes sarnentos ou bandidos incorrigíveis, não são deixados ao relento, e sim recolhidos e tramitados pelos departamentos públicos competentes. Nem cachorros e cavalos têm uma sorte menos cerimoniosa. Mas, há uns meses, um jornal publicou a foto de um policial carregando um criminoso morto, rumo ao morgue, em um carrinho de mão imundo e coberto apenas em parte.

Cemitérios estão incorporados à arquitetura das cidades de hoje, de tal modo que a ideia da morte não condiz facilmente com o processo natural de decomposição. Mumificação, talvez. Das covas rasas aos sambaquis, e destes às necrópoles elegantes que valem como pontos turísticos, parece que o que passou, passou. Queremos flores, velas, santinhos, músicas, panegíricos; exigimos maquiagem, o melhor terno, a bandeira do time do coração. Deixamos bens que podem e devem ser úteis aos herdeiros, e sua distribuição não pode custar novas baixas e novos processos. Sem a certidão de óbito e suas averbações, não se morre juridicamente.

Há quase um século, Ortega y Gasset dizia que “não há ilhas de humanidade”, porém aqui e ali surgem notícias de que não é bem assim. Há os que não conhecem a roda, o fogo, a escrita, e muito menos os confortos; vemos fotos e, diante do computador, espantamo-nos. Mesmo para esses brutos, a visão de um homem em pleno procedimento de putrefação não é algo indiferente. Cassirer imaginou, como numa tabula rasa, aquela que seria a primeira reação diante de tal cena, saturada de repugnância e abandono, mas logo substituída pelo cuidado em nome de alguma outra coisa mais nobre. Eu mesmo imaginei que o autor dessa façanha tivesse sido uma mulher, ainda não vitimada, é claro, pelo genocídio aplicado pelo sexo oposto. A menos que eu esteja muito enganado, os homens vivem sob o signo da ingratidão e o Livro do Gênesis precisa sofrer alguns ajustes com urgência.

Talvez tudo isso explique a razão de jamais ter sido localizado um único fóssil, por ex., de chimpanzé. Eles não se enterram entre si e então desaparecem. Eu sei que dinossauros, mamutes e megatérios também não se inumavam e, mesmo assim, inúmeros restos esqueletais já foram localizados e geraram belas reconstituições. É que a própria fossilização é um fenômeno que resulta de uma série de improbabilidades.

Se a carcaça não fica exposta, mas é arrastada morro abaixo e afunda em um lago ou um rio, os restos jazem ocultos do sol. Em condições químicas adequadas – não completamente compreendidas pela ciência --, tem início o lento mecanismo de fossilização. Passados milhares ou milhões de anos, depois de sucessivas intempéries e alterações climáticas e geológicas, os restos podem se permitir ser escavados e recuperados. É um milagre antropológico ou paleontológico a localização de uma única tíbia ou de um mísero pedaço de mandíbula.

Jornal de Brasília

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