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Leonardo Jubé de Moura
Promotor de Justiça do MPDFT

No tribunal do júri, as perguntas (quesitos) são feitas aos jurados de forma simples e sucessiva.

Uma vez reconhecido que o acusado foi o autor do crime, pode-se deliberar acerca de alguma causa de absolvição. Se ele foi o autor, é preciso um motivo para absolver, ou não.

Essa causa de absolvição, tradicionalmente, ficava sujeita ao controle do juiz antes de ser submetida aos jurados. Ou seja, era preciso que a causa invocada tivesse algum respaldo no ordenamento jurídico. Juízes sérios jamais aceitariam uma tese de absolvição sem respaldo legal, como 'clemência', por exemplo. Tal tese nem mesmo seria objeto de questionamento aos jurados.

Nesse contexto, surgiu entre nós uma tese supostamente calcada em base legal - a tal legítima defesa da honra. Uma comunidade retrógrada fez vicejar essa tese, com aplicação admitida no tribunal do júri, espelho da sociedade.

A criatividade dos advogados de defesa, então admitida pelos juízes, permitiu que essa tal legítima defesa da honra absolvesse homens acusados de matar mulheres, normalmente, suas companheiras, sempre seus objetos.

Ocorre que essa realidade foi mudando, seguindo a evolução da sociedade. Mesmo antes da chamada Lei Maria da Penha (2006), bem antes os juízes já não aceitavam mais essa tese. Quer dizer, por maior que fosse a criatividade da defesa, já não se admitia sequer questionar aos jurados ('quesitar') teses sem um mínimo amparo legal, como a tal legítima defesa da honra.

Foi uma feliz realidade, consolidada há anos: as teses de defesa eram submetidas ao crivo do juiz, firme na lei e na Constituição, antes de serem apresentadas aos jurados. A tal legítima defesa da honra já não tinha aplicação nos tribunais do júri.

Adveio, porém, uma nova lei, em 2008, com o louvável objetivo de simplificar as perguntas (quesitos) feitas aos jurados. É que algumas teses discutidas, como legítima defesa, ensejavam diversas perguntas, correspondentes aos seus requisitos legais. No caso da legítima defesa, por exemplo, era preciso reconhecer: a) uma agressão injusta; b) atual ou iminente; c) contra a qual foram utilizados os meios necessários; d) meios utilizados moderadamente (art. 25 do Código Penal). Assim, no afã de simplificar, a nova lei estabeleceu uma única pergunta, após reconhecida a autoria do crime: se o acusado deve ser absolvido (Lei 11. 689/2008, novo art. 483, III, do Código de Processo Penal). Já não se questiona o jurado acerca dos requisitos legais da(s) tese(s) de absolvição, basta perguntar se absolve o acusado.

Mas a criatividade não tem fim. Com base nessa simplificação dos quesitos, passou-se a sustentar que qualquer causa de absolvição, legal ou não, é válida. O raciocínio é simples: basta ao jurado responder 'sim' à absolvição, não precisando mais examinar cada requisito legal da tese absolutória correspondente (legítima defesa ou outra). Basta absolver, mesmo sem motivo, ou por qualquer motivo. Não mais se submete a tese defensiva ao crivo do juiz.

A criatividade foi além. Não apenas se admitiu qualquer, ou nenhum, motivo para absolvição, mas ainda se vedou o recurso do Ministério Público. Ou seja, se o júri absolveu acabou, não cabe recurso, mesmo que a sociedade ou a família da vítima não saibam o porquê da absolvição (STF: RHC 117. 076, HC 178. 777, Tema 1087). Tudo isso sem lei expressa.

Agora, por unanimidade, o plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que a tal legítima defesa da honra não pode ser aplicada (ADPF 779/DF). Qual o alcance disso?

Ora, passou-se a entender que os jurados podem absolver por qualquer motivo; ou podem absolver sem motivo algum, por nada e sem controle, sem recurso. A não ser, então, pela tal legítima defesa da honra, que já não era mais aplicada há muito tempo.

Será isso mesmo? Pode-se tudo, inclusive a morte violenta por nada, menos invocar a tal legítima defesa da honra? Infelizmente, está sendo.

A vida já não vale nada. Basta que não se invoque a tal legítima defesa da honra. Se não se invocar nada, está autorizada a absolvição do assassino.

Encenar é preciso, viver não é preciso. Como se o vívido cenário de proteção à mulher pudesse prescindir da proteção à vida de todos.

Atribui-se a Otto Von Bismarck a ideia de que as leis são como as salsichas, melhor não saber como são feitas. Em alguns casos, a jurisprudência, também.

Correio Braziliense - 19/3/2021

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