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Ivaldo Lemos Junior
Promotor de Justiça do MPDFT

Indagado sobre as razões que o levavam a escrever, Amós Oz trouxe à colação uma lembrança dos tempos de colégio, onde, em um eucalipto no pátio, foi gravado um coraçãozinho trespassado por uma flecha e dois nomes, Gadi e Ruti. Gadi quis que a árvore perpetuasse uma informação importante si et in quantum: a de que gostava de Ruti (ou ambos se gostavam).

O amor, juvenil ou não, indiscreto ou não, violento ou não, lícito ou não, para sempre ou não, acaba acabando, num domingo, numa esquina, num café engordurado, sem mãos dadas no cinema ou no descartar furioso de um cigarro, como naquela crônica do Mendes. Ou com a morte.

Gadi quis “deixar alguma coisa”, que “restasse uma lembrança desse amor quando ele passasse”, nas palavras de Oz; quis “salvar alguma coisa das garras do tempo e do esquecimento”.

Tempo, o que é isso? “Quando não me perguntam, eu sei”, disse um velho sábio; “quando me perguntam, não sei”. Que necessidade é essa de se valer de processos indiretos de comparação entre eventos físicos ou pessoais entre si, em níveis mais ou menos elevados de síntese e abstração, mesmo em assuntos bastante particulares.

Em um livro que adquiri de segunda mão em um sebo, há a seguinte dedicatória: “Para a pessoa mais incrível que já conheci, com todo carinho e admiração que você merece. Beijos, Mi”. Não há o nome ou mesmo as iniciais do destinatário. Não há data nem local. A subscritora era uma mulher; a julgar pela letra delicada, o “Mi” bem mais insinua uma Michele do que um Miguel.

Os beijos da Mi eram de carinho e admiração, que são a base do amor. Mas as equações amorosas têm outras variáveis. Talvez o que a Mi quisesse era se despedir da pessoa mais incrível que já conheceu. E a pessoa mais incrível que a Mi conheceu não quis nem conservar a saudade da homenagem, pois passou o livro para frente, decerto por uma mixaria.

Jornal de Brasília - 11/11/2020

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