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Ivaldo Lemos Junior
Promotor de Justiça do MPDFT

No filme “Yesterday”, por um desses artifícios que o cinema não se preocupa em burilar – no caso, uma pane elétrica que afeta o mundo inteiro por alguns instantes –, o espólio musical dos Beatles some da face da Terra. Na verdade, os integrantes dos Beatles existiam como indivíduos, mas o grupo em si desaparece e, portanto, suas canções.

Jack Malik, “busker” (músico semi-profissional) à beira de desistir da carreira artística, não é afetado pelo apagão. Jack conhecia, claro, o repertório do quarteto de Liverpool e descobre que ninguém (ou quase ninguém) nunca tinha ouvido falar em “She loves you”, “Hey Jude”, “Something”, nada disso.

A partir daí, ele recapitula as faixas e as apresenta publicamente como se fossem composições autorais. É questão de tempo para que comece a fazer sucesso e ganhar tudo o que a fama tem de bom a oferecer, garotas, luxo, prestígio.

Na “República” de Platão, Giges é um pastor cujo rebanho é tragado por um terremoto. Ao sair para recuperar suas ovelhas, descobre o cadáver de um gigante, dentro de um cavalo de bronze, e se apodera de um anel do morto, que lhe dá o poder de ficar invisível. Com essa vantagem, vai ao palácio do rei, mata-o, seduz a rainha e usurpa o trono (uma versão anterior, de Heródoto, é bem diferente, mas vamos ficar por aqui).

O anel de Malik, a rigor, não trouxe prejuízo a ninguém. Ao contrário. Ele até agiu com generosidade na partilha do conhecimento, vale dizer, de convolação de um mundo sem Beatles em um mundo com Beatles. Ainda assim, o rapaz se atormentava por ter feito um pacto fáustico quase sem querer; algo não estava correto.

O blecaute não deletou apenas os Beatles, mas também seu filhote bastardo, a banda Oasis, além de Coca-Cola e cigarros. Nem sempre a vida imita a arte. Desconfio seriamente que um mundo sem esses itens fosse um mundo melhor para se viver.

Jornal de Brasília - 20/5/2020

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