Seu navegador nao suporta javascript, mas isso nao afetara sua navegacao nesta pagina MPDFT - O acordo de não persecução penal não é aplicável nas Justiças Militares

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Nísio Tostes Ribeiro Filho
Promotor de Justiça do MPDFT

Em um primeiro momento, tive dúvidas sobre a aplicação do Acordo de Não Persecução Penal (ANPP) nas Justiças Militares. Afinal, apesar das opiniões contrárias, o ANPP possui aspectos positivos que, como destacam alguns colegas que atuam na Justiça Comum, solucionam um ou outro problema do sistema criminal brasileiro. Muitas vezes, as consequências de uma sentença penal condenatória são mínimas, bastando analisar as condições dos sursis que tão frequentemente são concedidos. Assim, indaga-se: Vale a pena todo o gasto e desgaste de um processo, o transcurso de anos até poder executar uma condenação, para tudo desaguar em prestação de serviços à comunidade, frequência em cursos, pagamento de cestas básicas ou a realização de tratamento médico, se esse resultado pode ser atingido prontamente antes mesmo do início do processo? Perde-se um nome no rol dos culpados (o que significa muito pouco na realidade da maioria dos réus, ao menos na Justiça Comum), mas ganha-se uma celeridade pouco vista anteriormente. Casos que resultariam em impunidade diante da prescrição, agora podem gerar consequências para o criminoso, ainda que não associadas a uma sentença condenatória. Convenhamos: soa como um cenário tentador?

A questão é que a Justiça Militar é muito diferente da Justiça Comum. O seu público é diferente. Os seus objetivos são diferentes. O seu alcance é diferente. O fundamento da sua existência é diferente. Tais aspectos são dificilmente percebidos por aqueles que nela não atuam, por aqueles que não a compreendem e por aqueles que nunca quiseram compreendê-la. A falta dessa compreensão muitas vezes dá vida a decisões, especialmente de tribunais superiores, que aplicam na Justiça Castrense regras do direito comum, criadas para a sociedade civil, e não para os militares, que possuem regras, direitos e deveres distintos.

As instituições militares são legitimadas ao uso da força e da coerção para a manutenção da paz e da ordem e, assim, precisam de mecanismos de controle próprios. Isso não passou despercebido pelo legislador constitucional, que as estruturou de forma verticalizada, com base nos princípios da hierarquia e da disciplina [1], de modo diametralmente diverso do que ocorre na sociedade civil, estruturada horizontalmente, com base no princípio da igualdade.

Recente artigo escrito pelo eminente Juiz Ronaldo João Roth, titular da 1ª Auditoria Militar do Estado de São Paulo, e dois oficiais da briosa Polícia Militar do Estado do Piauí, explora com absoluta propriedade algumas das peculiaridades da Justiça Castrense que impedem a aplicação do ANPP. Mas existem outros aspectos que me preocupam, como a prescrição e a pena acessória da indignidade para o oficialato.

O fato é que a Lei 23.954/19 incluiu no art. 116 do Código Penal (CP) uma nova causa impeditiva da prescrição relacionada ao cumprimento do ANPP ('IV - enquanto não cumprido ou não rescindido o acordo de não persecução penal.'). Como tal instituto não foi incluído no Código Penal Militar (CPM), percebe-se que o legislador não pensou em aplicá-lo na Justiça Militar.

Considerando que as normas sobre prescrição devem ser interpretadas restritivamente e que o direito penal veda a analogia 'in malam partem', não me parece possível ampliar a abrangência do art. 116, IV, do CP para aplicá-lo ao CPM. Ou seja, no meu ponto de vista, na seara castrense o ANPP não impede o curso da prescrição, gerando total incerteza sobre o eventual 'jus puniendi' do Estado na hipótese de descumprimento do acordo. Anula-se, assim, qualquer vantagem que se possa ter com a aplicação do ANPP.

E isso é especialmente relevante quando se recorda que o ANPP abrange crimes de pequena monta, cuja prescrição no CPM muitas vezes se dá em prazo exíguo, menor do que o previsto no CP (lembre-se que, ao modificar o prazo prescricional no CP pela Lei nº 12.234/2010, o legislador não alterou as regras do CPM).

De outro lado, o art. 100 do CPM prevê uma pena acessória própria, a indignidade para o oficialato, que deve ser aplicada 'qualquer que seja a pena, nos crimes de traição, espionagem ou cobardia, ou em qualquer dos definidos nos arts. 161, 235, 240, 242, 243, 244, 245, 251, 252, 303, 304, 311 e 312'. Apesar de a maioria destes crimes possuir pena inferior a 4 anos - o que eventualmente possibilitaria a aplicação do ANPP -, eles versam sobre condutas consideradas legal e moralmente incompatíveis com o que se exige de um Oficial de uma instituição militar e, por isso, são considerados gravíssimos para o direito castrense.

Essas situações gravíssimas e incompatíveis com as instituições militares (alguém aceitaria a permanência na tropa de um Oficial estelionatário, ou um comandante que desviou, para si, bens ou valores da unidade que comandava?!) poderiam acabar sendo 'solucionadas' com o ANPP, dependendo da boa vontade e subjetividade de um Promotor ou Juiz mais liberal que atue no caso, dando ao autor do fato completa isenção de pena e permitindo que ele possa prosseguir dentro das fileiras da corporação militar a que pertença. Seria admissível isso no sistema castrense de justiça?! A sociedade pode ter gente assim atuando no braço armado do Estado? Inclusive em posições de comando?

Todos conhecem aquele velho ditado 'uma laranja podre contamina todo o cesto'. Infelizmente, na Justiça Comum uma condenação ou uma absolvição não altera quase nada para a sociedade civil. O efeito preventivo das decisões penais da Justiça Comum perdeu-se há muito tempo, até porque ela perdeu certa credibilidade com os excessos do 'garantismo' em nosso país. Mas o efeito preventivo das decisões do Poder Judiciário persiste na Justiça Militar. Ao longo dos anos, percebe-se que o rigor ou o abrandamento dos julgamentos da Justiça Militar repercute imensamente na tropa, norteia os limites da disciplina e influencia até mesmo na atuação operacional. Daí a preocupação, pois permitir que um Oficial pratique delitos sem receber nenhuma punição, sem ser considerado indigno, é abrir as porteiras para a improbidade, com consequências terríveis tanto para as instituições militares como para a sociedade civil que elas devem proteger e zelar.

Em conclusão, confesso que hoje estou convencido da não aplicação do ANPP na Justiça Castrense, Estadual ou Federal. Pelo menos, não da forma como atualmente previsto.

Se um homem começar com certezas, ele deverá terminar em dúvidas; mas se ele se satisfizer em começar com dúvidas, ele deverá terminar em certezas.

Francis Bacon, The Advancement of Learning, 1605.

[1] Neste sentido, os arts. 42 e 142 da CF/88, que se referem, respectivamente, às polícias e corpos de bombeiros militares (militares estaduais) e às forças armadas (militares federais). A natureza de garantia da hierarquia e da disciplina é defendida por meu colega e amigo Adriano Alves-Marreiros, que, em breve, lançará obra abordando a questão

O Estado de S. Paulo (Blog do Fausto Macedo) - 4/5/2020

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