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Renato Barão Varalda
Promotor de Justiça e Coordenador da Promotoria de Justiça da Infância e Juventude (DF) e Mestre em Direito pela Universidade de Lisboa

O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), Lei Federal nº 8.069, de 13 de julho de 1990, completou 18 anos de existência. Embora essa lei estabeleça suficientes princípios à concretização dos direitos fundamentais de crianças e adolescentes, o fato é que ainda há uma enorme distância entre a lei e a realidade. O ECA detalhou a doutrina da proteção integral à criança e ao adolescente, que já havia sido abraçada pela Constituição Federal (CF) de 1988, no artigo 227, o qual estabelece: "É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão".

Dessa forma, o ECA previu um sistema de co-responsabilidade do Estado, sociedade e família no acatamento da doutrina da proteção integral da criança e do adolescente. Em síntese, no ECA há normas que disciplinam os princípios fundamentais das relações jurídicas que envolvam crianças e adolescentes no âmbito da família, da sociedade e do Estado.

Por sua vez, a Convenção sobre os Direitos da Criança, no cenário internacional, ao adotar a doutrina da proteção integral aos direitos da criança e do adolescente, elevou-os à condição de sujeitos de direito, aos quais são assegurados todos os direitos e garantias fundamentais do adulto e outros especiais, provenientes de sua condição peculiar de pessoa em desenvolvimento. O artigo 3º da referida Convenção estabelece que as decisões públicas relacionadas com a criança devem ser tomadas atendendo ao interesse superior da criança. A proteção integral se justifica em razão de serem pessoas incapazes, dada a sua condição temporária, de, por si só, não estarem aptos a fazer valer seus próprios direitos.

O tratamento jurídico especial conferido à população infanto-juvenil e o princípio do melhor interesse da criança e do adolescente estão correlacionados com o princípio da condição peculiar de pessoas em desenvolvimento, o que significa dizer que a criança e o adolescente encontram-se em formação sob os aspectos físico, emocional e intelectual. Em razão dessa condição, esses sujeitos não conhecem totalmente os seus direitos e não são capazes de lutar por sua implementação. E é justamente por essa condição de pessoas em desenvolvimento que são detentores de direitos especiais.

Então, diante da ordem jurídica atual, como responsabilizar a família, o Estado e a sociedade pelo evidente descaso na concretização dos direitos fundamentais infanto-juvenis e, por outro lado, pelo crescente aumento da prática de atos infracionais por crianças e adolescentes em nosso país?

Todas as garantias acima mencionadas surgiram com a intenção de minimizar os abusos praticados contra essas pessoas que se encontram em condições especiais de desenvolvimento físico, mental e psicológico e, assim, garantir a isonomia material com a população adulta. Desse modo, buscou-se garantir um mínimo aceitável de condições adequadas de desenvolvimento para viabilizar o atingimento da idade adulta com dignidade. Contudo, inúmeras crianças e adolescentes vivem à margem das mais básicas políticas públicas, como educação, saúde, lazer, cultura, segurança etc. O desrespeito começa justamente na falta de vontade política dos dirigentes do país não somente em priorizar recursos orçamentários suficientes à garantia desses direitos fundamentais, mas também em executá-los corretamente. Embora, muitas vezes, possa se identificar, nas leis orçamentárias, rubricas para a área da infância e juventude, nem sempre tais recursos públicos são realmente utilizados no decorrer do ano para a finalidade inicialmente prevista, seja porque são remanejados para outras finalidades elegidas pela administração, seja porque simplesmente deixam de ser aplicados.

Segundo o Princípio da Prioridade Absoluta, inserido na CF, a criança e o adolescente devem figurar, obrigatoriamente, entre as prioridades das autoridades públicas, apesar da realidade do país estar em flagrante contradição com o citado princípio constitucional. De acordo com o parágrafo único do artigo 4º do ECA, a garantia de prioridade compreende: a) primazia de receber proteção e socorro em quaisquer circunstâncias; b) precedência de atendimento nos serviços públicos ou de relevância pública; c) preferência na formulação e na execução das políticas sociais públicas e d) destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção à infância e à juventude. Diante da falta de cumprimento desses dispositivos, os órgãos incumbidos de zelar pela proteção dos direitos da criança e do adolescente (como o Ministério Público e a Defensoria Pública) têm escolhido a via judicial como uma das alternativas para forçar o Estado a cumprir suas obrigações1, embora muitas decisões judiciais tenham insistido na tese da insindicabilidade dos atos administrativos, sob o amparo de doutrinas clássicas como a da tripartição dos poderes, sem, no entanto, atentar para a necessidade de redefini-las e adequá-las ao Estado Social.

Mas não apenas o Estado deixa de cumprir a sua obrigação para com a população infanto-juvenil. É sabido que a desestruturação familiar (o que resulta em crianças e adolescentes vivendo nas ruas, vítimas de maus-tratos por parte de genitores omissos, em situação de dependência química etc), o baixo poder aquisitivo das famílias (em função da situação econômica e social do país, especialmente a falta de oportunidades de trabalho), a proximidade com agentes da violência na comunidade (a idéia de que a violência já é algo normal) e a falta de perspectiva para o futuro levam os adolescentes à prática de atos infracionais. E foi justamente para bloquear esse ciclo prejudicial aos jovens e possibilitar-lhes um futuro melhor e, com isso, também garantir mais segurança à sociedade, que o legislador elegeu o sistema de co-responsabilidade acima mencionado.

Por sua vez, o Código Penal brasileiro estabeleceu, em seus artigos 136, 244, 246 e 247, os crimes de maus-tratos, abandono material, intelectual e moral, com penas de detenção e multa, aos violadores dos direitos fundamentais de crianças e adolescentes. Ocorre que, no Brasil, há uma cultura de não responsabilização familiar pela situação de risco ou em conflito com a lei em que se encontram milhares de crianças e adolescentes. Em que pese as Promotorias da Infância e Juventude atenderem diariamente dezenas de jovens com os mais básicos direitos infanto-juvenis violados, há pouquíssimos inquéritos, denúncias e ações penais visando responsabilizar criminalmente a conduta dolosa ou culposa de genitores e responsáveis que, muitas vezes, leva tais jovens a se colocarem em situação de risco ou a praticarem atos infracionais  contra terceiros.

Quando o adolescente chega a cometer um ato infracional, é bastante provável que ele não tenha recebido do seu meio familiar os limites e valores necessários a impedi-lo de desrespeitar os direitos dos outros. Isso significa dizer que muitas famílias brasileiras estão permanentemente descumprindo o ECA, pois há vários dispositivos que impõem aos pais ou responsáveis o dever de criar e educar adequadamente os filhos/pupilos para que possam conviver em sociedade de forma saudável. Em contrapartida, isso traduz em um direito dos filhos de receberem de seus pais ou responsáveis os cuidados necessários para que se tornem, na vida adulta, membros saudáveis da sociedade em que vivem. Se se verificar uma omissão da família nessa obrigação (o que muitas vezes resulta em prejuízo à própria segurança da sociedade), o Estado deveria punir os pais ou responsáveis que descumpriram as obrigações decorrentes do poder familiar, por meio da infração administrativa prevista no artigo 249 do ECA.

Ocorre que essa infração prevê como sanção o pagamento de multa, sendo, portanto inviável, diante da situação econômica desfavorecida de muitas famílias e do conseqüente prejuízo aos próprios filhos, que se privariam de receber necessidades mínimas à garantida dos direitos fundamentais básicos. Há também a previsão no ECA da possibilidade de suspensão ou destituição de pário poder, ação que é geralmente manejada apenas nos casos mais graves, em que houve o abandono por completo dos filhos por parte dos seus genitores e há a necessidade de colocá-los em família substituta (adoção), não sendo portanto aplicável nas situações em que se encontram os adolescentes em conflito com a lei. Assim, tem que se reconhecer que o Estado quase nunca consegue cumprir o papel de punir, ainda que com sanções administrativas, genitores e responsáveis omissos na educação dos filhos, seja porque os instrumentos previstos na legislação não  são adequados, seja porque esses pais ou responsáveis são pessoas completamente despreparadas para o mister de educar, pois, na maioria das vezes, também foram vítimas de violação de direitos por parte de seus progenitores, Estado e sociedade.

Quando se verifica essas falhas na criação dos filhos, que os levam à prática de atos infracionais, cabe ao Estado a adoção de medidas que visem à reeducação desses jovens infratores, o que deve ser feito para garantir a proteção deles mesmos (ajudá-los a romper a trajetória em meio violento) e da  própria sociedade, pois a segurança pública é direito de todo cidadão.

Para cumprir a tarefa de reeducação dos adolescentes-infratores, o Estado deve aplicar e executar de forma eficiente as medidas socioeducativas previstas no ECA. Contudo, a realidade da maioria dos Estados brasileiros é vergonhosa, pois as medidas socioeducativas em meio aberto (liberdade assistida e prestação de serviço à comunidade), quando aplicadas pelas Varas da Infância e da Juventude, muitas vezes sequer são cumpridas pelos adolescentes-infratores e, quando são, a forma de cumprimento é insuficiente para produzir mudança significativa na vida desses jovens, o que termina por ocasionar um sentimento de impunidade por parte dos adolescentes infratores e contribuir para a reiteração de atos infracionais. Essa situação tem como conseqüência a necessária aplicação de medidas restritivas de liberdade (semiliberdade e internação) com relação ao próximo ato infracional praticado pelo adolescente, cuja forma de execução também tem se mostrado inadequada para a ressocialização dos jovens infratores, já que a grande maioria das unidades executoras de medidas possuem instalações físicas precárias, recursos materiais escassos e recursos humanos insuficientes; bem como não há o atendimento dos centros de internação dos parâmetros estabelecidos pelo Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE), elaborado pela Secretaria Especial de Direitos Humanos e pelo Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA).

A resposta do Estado ao adolescente-infrator foi prevista na forma de medidas socioeducativas, porque, nessa faixa etária (dos 12 aos 18 anos), o jovem responde de forma mais eficiente à intervenção pedagógica, justamente por estar em processo de desenvolvimento. Porém, se o Estado-Juiz aplica uma medida socioeducativa e o Poder Executivo não fornece os meios adequados para o seu cumprimento, a mensagem que se passa ao jovem infrator é a de que nem sua família nem o Estado tiveram a capacidade de detê-lo na empreitada infracional. Ao deixar de responsabilizar o jovem de forma adequada, o Estado está incentivando a sua permanência no meio infracional.

Segundo dados do Relatório “Perfil dos Adolescentes-Infratores e dos Atos Infracionais”, do Ministério Público do Distrito Federal, elaborado a partir de registros obtidos de 725 adolescentes-infratores atendidos na Promotoria de Justiça, entre os anos de 2007 e 2008, constatou-se que a maior parte (56%) dos adolescentes-infratores é composta por jovens evadidos da escola, com prevalência em atos infracionais mais graves, tais como: roubo, tráfico de drogas, porte e disparo de arma de fogo e furto, enquanto que, entre os jovens assíduos à escola, houve o predomínio em atos de menor potencial ofensivo como ameaça, injúria, lesão corporal e pichação. Nota-se que o abandono da escola pelos adolescentes precede à entrada na criminalidade. A pesquisa apontou que os jovens que se envolveram em atos infracionais graves, primeiro abandonaram a escola. Daí pode-se concluir que, além desses jovens não terem recebido de suas famílias os valores básicos (como respeito ao próximo, ao patrimônio e à integridade física alheia), a escola também não tem conseguido repassar tais valores, além de não estar sendo capaz de efetivamente inseri-los no processo de ensino-aprendizagem e, com isso, evitar a evasão escolar. Diretores, professores e demais integrantes da comunidade escolar têm de trabalhar para desenvolver em seus alunos uma cultura de mais paz e menos violência, já que têm também um importante papel na formação desses jovens. Mas, quando se deparam com problemas comportamentais, as escolas têm optado por seguidas “transferências compulsórias” (o que se traduz na verdade em expulsão) desses alunos para outras escolas, muitas vezes mais distantes de sua residência, o que também contribui para o abandono da sala de aula e impossibilita a reeducação do jovem. Ao contrário disso, os adolescentes-infratores precisam ser acolhidos no meio escolar, o que apenas será possível por intermédio da adequada capacitação dos diretores e professores a lidar com esse público marginalizado.

Não se pode também deixar de responsabilizar a sociedade por sua omissão quanto às ações para prevenção da violência juvenil e para a ressocialização do jovem infrator. Salvo alguns membros da sociedade civil em ONGs, a maioria da população brasileira não se envolve com a questão da delinqüência juvenil, seja em ações atinentes à prevenção dessa criminalidade, seja no papel de fiscalizador do Estado quanto à implantação das necessárias políticas públicas na área de reeducação de adolescentes-infratores. A sociedade não se conscientizou de sua responsabilidade na luta contra a violação dos direitos das crianças e adolescentes brasileiros.

A concretização do princípio da co-responsabilidade (família, Estado e sociedade) é fundamental para o rompimento da cultura de violência juvenil que grande parte da população brasileira encontra-se submetida nos dias atuais.

Revista Jurídica CONSULEX, Ano XII, nº 286, 15 de dezembro de 2008, p. 28-30

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