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Ivaldo Lemos Junior
Promotor de Justiça do MPDFT

Falávamos em levar a sério as leis aprovadas pelos Parlamentos – considerando que a linguagem corrente as denomina de "normas jurídicas" –, e que os operadores trabalham o direito como ele é. Acontece que devemos considerar que a edição de uma regra não exige apenas a análise técnica de seu conteúdo – que chamaremos de “o quê” – mas também implica o conhecimento adequado dos quesitos "como" e "porquê".

1) o "porquê" destaca a relevância e a conveniência da regra posta e de sua manutenção. A tarefa é de toda a sociedade, mas os mecanismos de definição competem ao direito. Este, no entanto, deve necessariamente consultar a sociologia, a história – inclusive para os devidos fins de sua aplicação futura, isto é, a sua “dimensão profética” – e a filosofia. Se não se conseguir enxergar se uma norma é ou não justa, ou oportuna, ou necessária, ou se é “politicamente correta” no momento, mas trará conseqüências nefastas em um futuro mais ou menos próximo, é porque a sociedade claramente não sabe se autogovernar. Não sabe se reger por conta própria. Não conhece seu passado nem os valores que a orientam. Não tem uma perspectiva com boa visibilidade pela frente. Concebe a sua "constituição" como um documento superficial, suscetível a mil e um remendos (“emendas”), inclusive naquilo que mais importa. Nessa escuridão, o melhor que acha por fazer é legislar em abundância, com frenesi, permitindo-se todas as incongruências imagináveis e, em caso de piora da saúde jurídica, sempre redobrando a dose do remédio errado. Uma tal sociedade está fadada ao caos ou ao desparecimento – duas hipóteses que, de forma alguma, são novidade na experiência humana.

2) o “como” diz respeito ao fazimento da norma, mas não no sentido estreito dos detalhes administrativos do processo legislativo, das filigranas de seus regimentos internos. O que se questiona, aqui, é o próprio processo político e o domínio da representação da vontade geral.Para Ortega y Gasset, "legislações são esquemas externos da vida pública", e Chaïm Perelman afirmava que jamais poderá esfriar o interesse pela "reação das consciências diante da iniqüidade do resultado da técnica de raciocínio utilizada em direito”. A moralidade pública não se contenta com formalidades, ainda por cima instáveis, da engenharia legislativa ou dos dispositivos das decisões judiciais, uma vez que o que realmente constrói (ou destrói) o consenso político são os seus fundamentos, e estes não são atributos nem de juízes nem de deputados. Há algo de errado, de fundamentalmente ilegítimo na produção de um direito fruto de eleições para cargos eletivos repletas de fraudes, compra de votos, promessas mirabolantes, mentiras deslavadas, pancadarias. Sabemos que cabos eleitorais de candidatos vitoriosos são agraciados com cargos, e empresas que contribuíram financeiramente para as campanhas eleitorais celebram contratos com o poder público. Mas isso é só a ponta do iceberg. A grande questão é o que Olavo de Carvalho chama de “estupro psicológico estatal”: “fazer o povo gostar do que não gosta, aprovar o que não aprova, cultuar o que despreza e desprezar o que cultuava”.

3) o "quê" é o domínio mais especializado do jurista enquanto tal. Mas a edição de uma regra não vale por si. Não fala por si, a não ser que se aceite o uso de um antropomorfismo cuja hipostasiação faz perder seu sentido original, que é metafórico, e que passa a ser interpretado concretamente. É o que ocorre quando se fala em “vontade do legislador” e “vontade da lei”, qual uma espécie de culto. O jurista freqüentemente cai nessa armadilha (“juristas são adoradores de normas”, M. Villey), talvez porque ela remonta ao império – ou ao sonho acordado – da democracia liberal, na qual a massa se contentava em ser massa e assentia a que seus problemas fossem resolvidos por funcionários com capacidade para fazê-lo. Assim, democracia e convivência legal funcionavam mais ou menos como sinônimos. É esse contentamento com as aparências que conduz à noção de Lei Federal como norma jurídica, e não como um texto, uma proposição relativamente ideal que se deixa abraçar pela leitura e plasmar pela compreensão.

Jornal de Brasília

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