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Sérgio Bruno Cabral Fernandes
Promotor de Justiça do MPDFT

Vinte de dezembro. Despertador, malas no carro, alvorada na estrada. Pai, mãe, filho ao encontro de avós, pais, irmãos e primos. Música, conversa, risos, lanche, água, gasolina, estrada. Freia, troca a marcha, seta, acelera. Trivial. O garoto pensa na troca de presentes de Natal e nos cavalos da fazenda. O motorista pensa no reencontro com os pais. A mulher olha para os dois pensativos e sorri. Carros, caminhões, céu, montanhas, árvores, vacas no pasto. Trivial. A vida passa pela janela. No sentido oposto, entre tantos, um carro surge querendo chegar ao destino antes de todos. Um pedaço de segundo, uma decisão errada, colisão frontal, explosão, fogo. Sonhos dilacerados. No asfalto, roupas espalhadas, animal de estimação inanimado, documentos, objetos pessoais e brinquedos sem dono.

A cena de pós-guerra ainda se desenrola, em câmera lenta sem áudio, quando outro acidente ocorre no mesmo local. Mais fogo, mais perdas vãs. Uma criança de três anos e a avó mortas. Esse desfecho trágico aconteceu na véspera do Natal e certamente está se repetindo neste exato momento em algum quilômetro. Mudam os nomes, mas o enredo segue o mesmo. Alta velocidade, imprudência, álcool, estradas ruins e falta de fiscalização. Familiares e amigos que ficam são vítimas colaterais, atônitas, digerindo a amarga notícia, buscando entender o incompreensível e herdando a dura tarefa de aprender a viver com a ausência daqueles que não morrem em nós.

Famílias despedaçadas e projetos interrompidos são a face oculta da guerrilha surda das estradas. O Correio publicou nas últimas semanas de dezembro a série "Órfãos do asfalto", sobre a violência no trânsito. Os relatos têm o mérito de fugir do sensacionalismo, ínsito ao tema, para narrar a face pouco explorada do problema. Retratar a dimensão humana desses acidentes é o mérito das reportagens. Quais nomes comporão esse mesmo enredo no próximo Natal?

A palavra "acidente" carrega o signo de um acontecimento fortuito, o qual não se pode evitar. Nada mais inapropriado quando se fala do trânsito brasileiro. Se tivéssemos de suportar apenas as mortes decorrentes de acidentes, no seu sentido estrito, excluindo-se as ultrapassagens perigosas, o álcool, o excesso de horas ao volante, a alta velocidade, a precariedade dos veículos, os buracos nas vias - todos, eventos evitáveis -, não estaríamos diante de uma guerra, mas sim de infortúnios da vida, com os quais temos de conviver. Difícil é aceitar mortes prenunciadas, causadas por fatores conhecidos que se repetem todos aos anos. É fundamental que eventos desse tipo não sejam vistos passivamente como meros "acidentes".

A Austrália criou em 1989 uma bem-sucedida campanha com foco na conduta do motorista. Em vez de simples mensagens abstratas do tipo "se beber, não dirija", os vídeos enfocam a vida real, concreta. São cenas fortes (https://youtu.be/Z2mf8DtWWd8), porém eficientes. Ainda que por alguns segundos são reproduzidas as sensações de viver uma tragédia e os resultados de um ato irresponsável à frente do volante. Não é preciso a morte para sentir o gosto rascante da perda.

Os personagens da tragédia narrada no início têm nome e história. Albertino e Roberta viveram um namoro de cidade do interior. Casaram jovens e tiveram Bruno. Roberta era uma jovem bonita e orgulhosa da família que formou. Bruno, 14 anos, estudava no Colégio Marista e queria tocar violão. Albertino era promotor de justiça e apaixonado por futebol. A aprovação no concurso do Ministério Público trouxe a família para Brasília, mas o amor pela cidade veio naturalmente. Todos os anos viajavam para reencontrar os familiares.

Essa jovem família foi extinta de forma violenta, num sopro de segundo, em acidente trágico que poderia ser evitado. A família de Albertino agora irá integrar as estatísticas. As mortes no trânsito no Brasil giram em torno de 40 mil pessoas por ano. A Guerra do Iraque, em mais de oito anos, matou 4,4 mil soldados americanos. Nesse mesmo período, segundo o Datasus, morreram 327.242 pessoas por acidentes de transporte terrestre. Guerrear no Iraque parece ser mais seguro do que conduzir um veículo nas vias brasileiras. Para o novo ano, teremos uma reprise de mortes anunciadas. Grande parte pela decisão individual de alguns motoristas. O que vale a pena ser feito para salvar uma vida? E 40 mil delas? Que tal iniciar uma guerra?

Correio Braziliense

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